Uma janela para o inferno — foi esse o cenário com que o agricultor Jorge Barbosa, 70 anos, se deparou em sua propriedade em Boa Esperança do Sul, a 280 quilômetros de São Paulo, no centro do estado, no fim de agosto. Naquela tarde, um paredão de fogo com origem na mata avançou sobre sua plantação de banana, devorando mais de 120 pés em questão de minutos. Desesperado, ele conseguiu ao menos salvar as vacas que sustentam sua produção de laticínios, principal fonte de renda da família. “O incêndio saltava dezenas de metros a cada minuto. Eu nunca vi nada igual”, diz. Passado o fogaréu, ele, a mulher e os filhos temem pelo futuro. Barbosa afirma que não há mais pastos disponíveis para o gado, que pode morrer de fome. “A seca destruiu tudo”, lamenta. Viajar a Boa Esperança do Sul e à vizinha Trabiju, na região de Araraquara, é percorrer a triste imensidão da pior seca já vivida no Brasil. Há nove meses não chove na região, um fenômeno jamais visto no que sempre foi um vale fértil e próspero, onde se localizam alguns dos municípios com melhor qualidade de vida do país.
Para registrar a catástrofe em curso, a reportagem de VEJA percorreu o terreno esturricado, coletando relatos angustiados como o de Barbosa sobre a aridez implacável. Às margens da rodovia que conecta Trabiju e Boa Esperança do Sul à capital, assiste-se a um desfile de propriedades calcinadas por incêndios, onde a produção agrícola míngua sob o sol inclemente. O horizonte é cinza, encoberto pela fuligem, tornando aflitivo respirar em um local onde a falta de chuvas fez a umidade relativa do ar despencar para 15%. Os dois municípios são exemplos extremos da estiagem que devasta o Brasil desde o ano passado. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 3 978 municípios brasileiros, ou 71% do total, padecem de falta de chuvas e, se as previsões se confirmarem, o número chegará a 82% até o fim de setembro, um recorde. A secura afeta 25 dos 27 estados — só Rio Grande do Sul e Santa Catarina escapam —, impondo sofridas consequências a quase 200 milhões de brasileiros (veja o mapa). “Em extensão e intensidade, é a pior estiagem da história, nunca enfrentamos nada parecido”, diz Ana Paula Cunha, especialista em secas do Cemaden.
Com o avançar dos meses sem chuva, a crise assumiu características de pesadelo climático — a vegetação ressecada serve de combustível para as queimadas, quase todas provocadas por ação humana, que agora se propagam em velocidade jamais vista. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe), o Brasil somou 160 000 focos até setembro, o dobro do mesmo período do ano passado. O fogaréu cobriu de fumaça tóxica 60% do país e fez a qualidade do ar de cidades como São Paulo, Porto Velho e Brasília figurar entre as mais insalubres do planeta. “Estamos no meio da floresta, mas respiramos fuligem 24 horas por dia, há meses, o que fez minha família inteira adoecer”, diz Jesuíta Brito, 43 anos, empresária que vive com os filhos Maria Giulia, 11, Charlen, 4, e Rebeca, 9 meses, em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas, a 900 quilômetros de Manaus. Após doze meses seguidos de seca, a situação do município, segundo o Cemaden, é a pior do país — isso em uma região onde chuvaradas desabavam religiosamente todo fim de tarde.
O agravamento da situação chamuscou seriamente a imagem de um governo que se elegeu com a promessa de dar à agenda ambiental prioridade total, e falhou. Sob pressão da sociedade e do ministro do STF Flávio Dino, o presidente Lula anunciou, na terça-feira 17, a liberação de 514 milhões de reais para o combate às chamas. A medida provisória inclui a decretação de emergência climática, a criação do Conselho Nacional de Segurança Climática e um projeto de lei para endurecer a pena de quem provocar incêndios. A iniciativa, no entanto, não foi capaz de reverter o mal-estar causado pela inação das autoridades até agora. Lula conseguiu reduzir o desmatamento, que na Amazônia registra queda de 62% na comparação com a gestão de Jair Bolsonaro. Mas, segundo especialistas, falta coordenação no combate a questões como o fogo criminoso ateado para a grilagem de terras. “As três esferas de governo precisam se envolver no manejo do fogo, que já conta com legislação bastante restritiva. Lula pode e deve gerenciar a distribuição de recursos e esforços, punindo quem desobedecer”, afirma Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
Além da extensão sem precedentes, a seca atual demonstra intensidade extraordinária. Nunca tantos municípios foram afetados pelo nível extremo, o pior na escala do fenômeno, até pouco tempo atrás restrito ao sertão nordestino retratado em Vidas Secas, de 1938, a obra-prima de Graciliano Ramos.
O Cemaden mostra que setembro deve se encerrar com 232 cidades em situação de seca extrema, com destaque para São Paulo (82), Minas Gerais (52) e Mato Grosso (24). “Nem o sistema de irrigação foi capaz de salvar a safra”, diz Maria Elvira Bortolozzo, 88 anos, que toca com o filho José Roberto, 63, uma fazenda de café em Trabiju.
Com temperaturas que não raro cravam 43 graus, mais da metade do cafezal não produziu grãos neste ano. Vanessa Belonconque, 38, que arrenda terras para outros produtores, tem queixa semelhante. “O calor literalmente cozinhou plantações de melancia e soja”, diz. “Nossas nascentes não têm mais água.”
De acordo com levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), 12 milhões de brasileiros não veem chuva há mais de 100 dias, o que inclui os moradores de Belo Horizonte, a capital em pior situação. Os prejuízos impostos pela crise ambiental são alarmantes.
Até 16 de setembro, 538 municípios, onde vivem 10 milhões de pessoas, haviam decretado situação de emergência devido ao avanço do fogo, totalizando danos de 1,1 bilhão de reais. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura, calcula em 21 milhões de toneladas a redução da safra de grãos, o que representa queda de 6% na comparação com o ciclo anterior. Em São Paulo, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento estima que os produtores, principalmente de cana-de-açúcar, tenham perdido 2 bilhões de reais nas últimas semanas. No caso dos pés de café, planta extremamente sensível ao calor, a recuperação não virá antes de 2026. Os custos disso vão recair, inexoravelmente, sobre os consumidores. “A inflação preocupa, sobretudo em virtude do clima”, admitiu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. No industrializado Triângulo Mineiro, o repasse já supera 25% nos preços do leite e do açúcar. “O impacto é enorme e afeta toda a cadeia produtiva”, diz Pedro Henrique Silva de Paula, proprietário da fábrica Alimentos Triângulo, sediada em Canápolis. O município não vê chuva há dez meses e reparte com Apiacás, em Mato Grosso, a cruel vice-liderança no ranking da secura nacional.
A mudança no regime de chuvas e a sucessão de ondas de calor são provocadas por uma soma de fatores. Formado no último ano, o El Niño, fenômeno natural que consiste na elevação da temperatura da superfície do Oceano Pacífico, contribuiu para deixar o país 1,5 grau mais quente na comparação com o período pré-industrial, o aumento máximo admitido pelo Acordo de Paris.
Meteorologistas esperavam que o El Niño perdesse força e encerrasse a seca em abril, mas sucessivos bloqueios atmosféricos estão impedindo que as frentes frias avancem pelo país, fazendo com que as nuvens descarreguem toda a chuva sobre os estados mais ao Sul.
Por sua vez, um aquecimento incomum em faixas do Oceano Atlântico alterou a distribuição dos temporais. Mas essa conjunção de fatores explica parte do problema — a causa principal da seca, alertam os cientistas, é o superaquecimento do globo, que multiplica a intensidade e a frequência de eventos excepcionais.
“A clara tendência de maior repetição de estiagens a partir dos anos 1990 se acelerou ainda mais nos últimos dez anos”, diz José Marengo, climatologista membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU.
O Brasil está, literalmente, secando: em quarenta anos, perdeu 6,3 milhões de hectares de superfície de água, quase um terço do que tinha em 1985.
Além do efeito estufa, a destruição de matas nativas fez minguar o período de chuvas ao afetar um mecanismo chamado de evapotranspiração.
Em períodos secos, a floresta retira do subsolo e emite por suas folhas quase 5 litros de água por metro quadrado. Essa transpiração sobe até a atmosfera, onde é transportada por correntes de ar, os chamados rios aéreos, até desabar sob forma de chuva em todo o país.
Problema: quando a mata é substituída por pastagem, a emissão de umidade se reduz em 70%, secando rios e esturricando terras.
No município de Benjamin Constant, na fronteira com o Peru, o Rio Solimões simplesmente desapareceu.
“Não temos acesso à água potável, o que está empurrando as pessoas para a fome”, diz a líder indígena Myrian Metchituna, da tribo Tikuna.
A receita do reputado climatologista Carlos Nobre para reverter o caos ambiental passa por acelerar o corte de emissões de gases do efeito estufa com medidas drásticas, como a proibição completa do uso do fogo no campo e o restauro da vegetação nativa em 1 milhão de quilômetros quadrados de terrenos degradados até o fim da década.
“Isso baixaria a temperatura e normalizaria o ciclo de chuvas, promovendo uma série de ganhos econômicos”, defende. O recado das chamas e dos rios secos é tão claro quanto o céu sem nuvens: não há tempo a perder.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911
Mín. 25° Máx. 28°